março 21, 2011

CRÍTICA - "LUCIA, do Met, surpreende pela qualidade vocal dos solistas" - por Carlos Magno Almeida

Por Carlos Magno Almeida - do Rio de Janeiro

LUCIA DI LAMMERMOOR, obra-prima do bel canto italiano composta na primeira metade do século XIX por Gaetano Donizetti, não é propriamente uma novidade nas principais casas de ópera do mundo. Ao contrário, desde o sucesso na estreia em Nápoles, em 1835, o drama romântico que conta a trágica história de amor entre Lucia e Edgardo vem sendo exaustivamente encenado na Europa, Estados Unidos e mesmo no Brasil (o Municipal do Rio anuncia para maio uma montagem de Alberto Renault).

A ópera, uma das 65 compostas pelo profícuo Donizetti, foi gravada por algumas das maiores vozes do século passado, inclusive e principalmente por Callas que, como nenhuma outra cantora lírica, imprimiu à protagonista a alta carga de dramaticidade que foi a marca do compositor. Não é fácil, portanto, encenar uma Lucia que surpreenda.

Pois o Met surpreendeu com a montagem transmitida ao vivo de Nova York no sábado, 19, para cinemas de todo mundo. Afinal, não é todo dia que se juntam em um mesmo palco belas vozes, excelentes interpretações, uma orquestra competente e uma direção que, se não foi brilhante, também não comprometeu.

Quem conhece a ópera já entra no teatro com a expectativa de ouvir Regnava nel silenzo, primeira ária para soprano ainda no primeiro ato, interpretada por nove entre dez das maiores vozes femininas que a humanidade produziu. Daí a ansiedade natural da plateia a cada nova interpretação. Mas na produção do Met, a excelência vocal do elenco se manifesta mais cedo, logo ao abrir da cortina, na voz impactante do barítono francês Ludovic Tézier, magistral no papel de Enrico, irmão de Lucia e responsável pela desventura amorosa que lhe custou a sanidade e, por fim, a vida. Dono de um timbre que se sobrepõe naturalmente às demais vozes, Tézier trouxe brilho de protagonista a um papel secundário.

Na trama, Enrico, chefe do clã escocês dos Ashton acossado por poderosos inimigos políticos, se opõe ferrenhamente ao romance entre Lucia e Edgardo, último remanescente do clã inimigo dos Ravenswood. A interpretação marcante que Tézier conferiu à personagem foi o sinal do que viria a ser uma produção digna da importância do Met no cenário lírico mundial. O melhor ainda estava por vir.

Logo em seu primeiro solo (Regnava...) Natalie Dessay mostrou porque é uma das sopranos mais solicitadas da atualidade. Apesar de ligeiramente afônica – o que ficou claro na breve entrevista à também soprano Renée Fleming, mestre de cerimônia da impecável transmissão - Dessay fez uma Lucia memorável tanto do ponto de vista cênico como vocal. aparentando segurança não somente nos agudos pelos quais ficou conhecida, mas também nas regiões mais baixas da escala.

A melancolia que transborda do libreto de Salvadore Cammarano ("você ouvirá no murmúrio do mar o eco dos meus lamentos" e "todo o universo é um deserto sem fim") e a melodia por vezes mórbida de um Donizetti atormentado por tragédias familiares encontraram na voz de Natalie uma profunda expressão da dor que a vida costuma impor aos corações apaixonados. Enquanto Callas chegou ao limite do humano na disputa com a flauta pela nota mais alta na célebre ária da loucura, a soprano francesa dispensou o instrumento e, a capella, com técnica impecável, intensidade cênica e uma pitada de improviso, levou a plateia do Met ao delírio.

Só faltava mesmo o tenor maltês Joseph Calleja dizer a que veio, o que aconteceu, de fato, nas cenas finais da ópera. Mais compenetrado do papel do que no primeiro e segundo atos, Calleja não deixou dúvidas sobre suas qualidades vocais no terceiro ato. Sua elegante e, ao mesmo tempo, pungente interpretação das árias Fra poco a me ricovero e Tu che a Dio spiegasti l’ali não chega a justificar a comparação com o incensado tenor italiano Beniamino Gigli, mas não deixou de ser brilhante.

Exageros à parte, a montagem do Met foi emocionante, como convém a uma ópera de Donizetti. Além da qualidade técnica do espetáculo, a própria transmissão foi um show à parte. Para quem está acostumado a assistir a uma ópera de um ponto de vista fixo na platéia, as transmissões do Met, reproduzidas nos cinemas brasileiros pela Mobz Live, abrem uma nova perspectiva para o gênero. Os close ups, as entrevistas com cantores e produtores e as cenas de bastidor contribuem para criar uma sensação de proximidade entre o espectador e o palco, o que pode vir a ser um atalho para trazer de volta o público que a ópera perdeu nas últimas décadas.

O único senão da produção transmitida no sábado, se é que houve um, foi a direção da veterana Mary Zimmerman, que optou por cenários e figurinos bastante convencionais. Além disso, a materialização do fantasma que atormenta Lucia no primeiro ato e a aparição do espectro da protagonista na cena final da ópera eram totalmente dispensáveis. Mas a trivialidade desses recursos cênicos não chegou a turvar o brilho das vozes que deram vida às principais personagens, inclusive a do baixo sul-coreano Kwangchul Youn, excelente no papel do capelão Raimondo. E em se tratando de uma das principais composições do que se convencionou chamar de bel canto, as vozes são o principal ingrediente dessa obra que, nas décadas seguintes do século XIX, serviria de inspiração para Verdi e para a maioria dos compositores da ópera romântica italiana que bebeu da fonte donizettiana.

Serviço:

Próximas óperas
O CONDE ORY – 19/04
CAPRICCIO - 23/04
O TROVADOR – 30/04
A VALQUÍRIA – 14/05

2 comentários:

Lu Medeiros disse...

Adorei. Clara e informativa!

Rafael Kafka disse...

Excelente análise! Ótimo que a mídia esteja atenta e o publico cresça cada vez mais!