setembro 02, 2011

COLUNA RODOLFO VALVERDE - ÓPERAS EM FESTIVAL: SIMON BOCCANEGRA

O grande nome da ópera romântica italiana é indiscutivelmente Giuseppe Verdi (1813-1901) que, a partir do legado musical recebido de Gaetano Donizetti, engendrou profundas transformações dramáticas no teatro lírico. 

Após uma fase inicial de intensa produção operística, que ele mesmo chamou de anni di galera, compondo quinze obras em pouco mais de dez anos, Verdi deu início à sua reformulação com Rigoletto, Il Trovatore e La Traviata. Nestas, inverte-se o eixo fundamental da ópera belcantista italiana até então. Normalmente concebida em função da grande ária, a própria cena torna-se o centro da ópera, fruto da procura verdiana por uma veracidade dramática que leva o compositor a encontrar uma nova parola scenica.

A partir da colaboração com o libretista, e também compositor, Arrigo Boito, Verdi concretiza todas as suas aspirações dramático-musicais nas obras-primas finais de sua carreira, Otello (1887) e Falstaff (1893), ambas baseadas em Shakespeare. Deste mesmo período, temos a revisão definitiva de Simon Boccanegra (1880-81), originalmente composta em 1857. 

Comparando-se as duas versões, percebe-se claramente a profundidade obtida pelo compositor, especialmente numa inserção totalmente nova, e dramaticamente impressionante, na cena do Conselho que encerra o Ato I. 

 
Simon Boccanegra tem como base de seu libretto, escrito por Francesco Maria Piave (com revisões de Boito) e baseado na obra de Garcia Gutiérrez, uma temática cara a Verdi, a relação pai-filha, presente em várias de suas outras óperas.

Porém, importante distinção se faz no papel delineado para o protagonista, Boccanegra, confiado a um barítono, e não ao tenor, herói por excelência da ópera romântica. Um dos papéis mais difíceis e exigentes do repertório de barítono, tanto vocalmente quanto cenicamente, Simon Boccanegra tem, nesta produção do MET, gravada em fevereiro de 2010, a performance do grande tenor Placido Domingo, na segunda produção em que interpreta o doge de Veneza. Domingo fez sua estreia no papel na Royal Opera House, Covent Garden, na mesma temporada.

A mestria indiscutível de Domingo se faz presente, especialmente em um personagem que tanto exige do intérprete, com sua ênfase na declamação e no texto. Entretanto, apesar da tessitura mais grave, continuamos a ouvir o Domingo tenor, com a cor e timbre característicos, jamais com as tintas escuras esperadas de um barítono heróico verdiano. 

Como Amelia (ou Maria), temos uma bela performance do soprano lirico spinto canadense Adrianne Pieczonka, associada habitualmente a papeis germânicos, em uma presença cênica de graça e sensibilidade. O tenor italiano Marcello Giordani interpreta, com sua classe vocal de sempre, Gabriele Adorno, personagem tantas vezes abraçado por Placido Domingo.

Completam o elenco, em ótimas atuações, o barítono Stephen Gaertner, como o vilão Paolo, e o veterano baixo norte-americano James Morris (o grande Wotan de sua geração, embora aqui sem a mesma solidez vocal), como Jacopo Fiesco. Em um período difícil, por sérios problemas de saúde, o diretor artístico do MET, James Levine, preserva intacta a sua afinidade com o discurso musical de Verdi em uma regência notável. 

A produção de Giancarlo del Monaco, tradicionalíssima em cenários e figurinos, é extremamente eficiente, reforçando especialmente atmosfera sombria que perpassa a obra. Esta mesma montagem, que estreou no MET em 1994, foi gravada e lançada em DVD pela DG com o cast inaugural. É um excelente exercício crítico comparar as performances atuais com as de Vladimir Chernov, Kiri Te Kanawa e o próprio Domingo, mas como tenor, interpretando Gabriele.

 
Das gravações em áudio existentes, a de Claudio Abbado à frente do efetivo orquestral e coral do Teatro alla Scala, Milano, ainda é a referência. Nela, reinam as vozes, à época soberanas (1977), de Piero Capuccilli (em sua maior performance gravada, um Boccanegra único), Mirella Freni, José Carreras, Nicolai Ghiaurov e Jose van Dam. 

Imperdível: Placido Domingo interpreta Simon Boccanegra, de Verdi, cena final: http://bcove.me/w0ig67kp
  
Dúvidas ou sugestões? Envie seu e-mail para rodolfo.valverde@mobz.com.br


Rodolfo Valverde
Crítico musical e professor da Faculdade de Música da UFJF (MG), onde ministra disciplinas como História e Apreciação Musicais, História da Ópera e Formas Musicais.

Conferencista, ministra cursos e palestras em festivais de música e centros culturais do país sobre os diversos estilos, compositores e obras do universo musical e operístico.

Colunista de música erudita do Jornal do Brasil durantes os anos de 2008 a 2010.

Nenhum comentário: